Vincent van Gogh: Entre a Arte e o Transtorno Bipolar

Vincent van Gogh: O Gênio que Pintava com Dor e Beleza — E a Luta Silenciosa com o Transtorno Bipolar

Noite Estrelada


Você já olhou para “Noite Estrelada” e sentiu que o céu estava vivo? Que as estrelas dançavam, que as nuvens respiravam, que tudo ali pulsava como um coração? Pois é. Esse quadro não nasceu de uma mente tranquila. Nasceu de uma alma em guerra consigo mesma.

Vincent van Gogh não era só um pintor. Era um homem que carregava dentro de si dois mundos: um que gritava cores, outro que sussurrava sombras. Hoje, sabemos que ele provavelmente vivia com transtorno bipolar — mas na época, ninguém entendia. Chamavam de “loucura”, “instabilidade”, “fracasso”. Ele mesmo se via assim. E isso dói. Dói demais.

Este texto não é só sobre arte ou diagnósticos. É sobre um ser humano tentando sobreviver à própria mente. É sobre como a beleza pode vir da dor — mas não precisa vir da dor. E é também um convite: vamos olhar para Vincent com mais ternura. Menos lenda, mais gente.

1. Antes das telas: o menino que nunca se encaixou

Vincent nasceu em 30 de março de 1853, numa pequena cidade holandesa chamada Zundert. Filho de um pastor, cresceu entre Bíblias, silêncios pesados e expectativas rígidas. Desde cedo, era diferente. Não no sentido romântico — no sentido real, cru, incômodo. Sentia as coisas com muita intensidade. Chorava fácil. Se isolava. Tinha acessos de raiva seguidos por dias de apatia total.

Tentou de tudo para “dar certo”: foi vendedor de arte, professor, pregador entre mineiros pobres. Em tudo, tropeçou. Não por falta de esforço — mas porque sua mente não obedecia aos ritmos do mundo. Ou estava paralisada, ou corria feito trem descarrilhado.

Nas cartas que escreveu ao irmão Theo — quase 700 delas sobreviveram — a gente vê um homem se debatendo. Num dia, ele escreve desesperado:

“Estou tão cansado, Theo… como se cada passo exigisse erguer uma montanha.”

Poucos dias depois, a mesma mão escreve com fogo:

“Trabalhei sem parar! Pintei três telas! Sinto que finalmente encontrei meu caminho!”

Essa montanha-russa emocional não era frescura. Era uma doença que não tinha nome naquele tempo — mas que hoje reconhecemos claramente. E o pior? Vincent sabia que algo estava errado. Sabia que não conseguia controlar seus altos e baixos. E isso o corroía por dentro.

As cartas: seu verdadeiro diário da alma

Se você quiser entender Vincent, leia suas cartas. São mais reveladoras que qualquer biografia. Ele escrevia para Theo como quem joga o coração no papel — sem filtros, sem vergonha, sem pose.

Em 1883, num momento de escuridão profunda, ele confessa:

“Às vezes me sinto como um navio à deriva, sem bússola, sem porto… e o pior é que ninguém vê a tempestade que está dentro de mim.”

E em 1888, no auge de uma fase de energia avassaladora:

“Não consigo dormir. Minha cabeça lateja de ideias. Comprei todas as tintas da loja. Preciso pintar tudo — agora!”

Theo, sempre paciente, respondia com carinho, dinheiro, conselhos. Mas também com medo. Sabia que o irmão estava à beira de um abismo — e não tinha ferramentas para salvá-lo.

Hoje, com o que sabemos sobre saúde mental, dá vontade de voltar no tempo e abraçar os dois. Dizer: “Calma. Isso tem tratamento. Vocês não estão sozinhos.”

Mas naquela época, não havia esse abraço.

2. A tela como terapia — e como grito

Vincent começou a pintar de verdade só aos 27 anos. Tarde? Talvez. Mas quando pegou o pincel, foi como se finalmente tivesse encontrado uma linguagem que o mundo entendia — mesmo que não comprasse seus quadros.

Ele pintava o que sentia. Literalmente.

Quando estava afundado, escolhia tons escuros, cenas pesadas. “Os Comedores de Batata” (1885) é disso: mãos calejadas, rostos cansados, luz fraca. Parece o retrato da própria exaustão dele.

Os Comedores de Batata


Quando estava em ebulição, explodia em amarelos, azuis elétricos, linhas que parecem vibrar. “Girassóis”, “O Quarto em Arles”, “Campo de Trigo com Corvos” — tudo isso veio de momentos em que sua mente estava em chamas. Criativa, sim. Mas também perigosa.

A arte era seu refúgio. Seu grito. Sua forma de dizer: “Estou aqui. Estou vivo. Mesmo que doa.”

A noite em que ele cortou a orelha — e ninguém entendeu

Dezembro de 1888. Arles, sul da França. Vincent havia convidado Paul Gauguin para morar com ele — queria criar um lugar onde artistas pudessem viver e criar juntos. No começo, deu certo. Depois, virou inferno.

Vincent estava num surto. Falava sem parar. Dormia pouco. Gastava todo o dinheiro que Theo mandava. Discutia com Gauguin por qualquer coisa. Até que, um dia, Gauguin disse que ia embora.

Aquilo foi o estopim.

Naquela noite, Vincent teve uma crise violenta. Pegou uma navalha. Cortou parte da orelha esquerda. Enrolou num pano. Levou até uma mulher que trabalhava numa pensão próxima — não como gesto romântico ou sexual, como muitos inventam, mas como um pedido de socorro mudo, desesperado.

Foi levado ao hospital. Diagnosticado com “delírio agudo”. Internado. Humilhado.

E sabe o que ele fez poucos dias depois? Pegou o pincel. Pintou um autorretrato com a cabeça enfaixada. Olhe nos olhos dele naquele quadro. Não há loucura ali. Há lucidez. Há dor. Há alguém que sabe que está doente — e não sabe como sair disso.

3. O asilo, as estrelas e os dias que não passavam

Depois da orelha, veio o asilo. Saint-Paul-de-Mausole, em Saint-Rémy. Um antigo mosteiro frio, com grades nas janelas e regras de convento. Vincent pediu para ser internado. Ele mesmo. Porque sabia que, fora dali, poderia se machucar de novo — ou machucar alguém.

Mas lá dentro, não parou de pintar. Fez mais de 150 obras em um ano. Entre elas, “Noite Estrelada”.

Olhe para esse quadro de novo. O céu não está calmo. Está girando. As estrelas são redemoinhos. A lua parece prestes a explodir. A oliveira se contorce como um corpo em agonia. Isso não é imaginação poética — é o retrato do que se passava na mente de Vincent naquele momento.

Ele escreveu a Theo:

“Mesmo aqui, aprisionado, vejo beleza. E a beleza me salva — mesmo que por algumas horas.”

Mas as crises continuavam. Dias em que achava que os médicos queriam envenená-lo. Noites em que tentava engolir tinta. Momentos em que se jogava no chão, gritando que via demônios nas paredes.

Os médicos da época? Prescreviam banhos gelados. Sangrias. Isolamento. Nada que realmente ajudasse. Apenas punições disfarçadas de tratamento.

E mesmo assim — mesmo assim — ele pintava. Como se cada pincelada fosse um suspiro de alívio. Um jeito de dizer: “Ainda estou aqui.”

O que fizeram com ele — e o que poderiam ter feito

Imagina sofrer de uma doença que faz sua mente oscilar entre o abismo e o furacão — e os “médicos” te colocarem numa banheira de gelo por horas para “acalmar os nervos”. Ou te trancarem num quarto sem janela porque você “precisa aprender disciplina”.

Isso era “tratamento” no século XIX.

Vincent passou por isso. E ainda assim criou. Criou como se a vida dependesse disso — porque, pra ele, dependia mesmo.

Hoje, com litío, lamotrigina, terapia, grupos de apoio — tudo muda. Pessoas com transtorno bipolar vivem, amam, trabalham, criam — sem precisar chegar perto do fundo do poço para fazer arte bonita.

Vincent merecia ter tido isso.

4. O tiro no campo — e o adeus que não precisava acontecer

Doze Girassóis numa Jarra

Maio de 1890. Vincent sai do asilo. Vai para Auvers-sur-Oise, uma cidadezinha perto de Paris. Fica sob os cuidados do Dr. Gachet — médico, pintor, e, segundo Vincent, “tão doente quanto eu”.

Theo está casado, tem um filho pequeno, e as finanças estão apertadas. Vincent sente o peso disso. Sente-se um fardo. Um erro. Um projeto fracassado.

Numa carta, ele escreve:

“Sinto que sou um estorvo… e que minha presença só traz preocupações.”

Em 27 de julho, sai para pintar nos campos. Volta à pensão com um tiro no peito. Diz que foi “um acidente”. Morre dois dias depois, nos braços de Theo.

Sua última frase:

“A tristeza durará para sempre.”

Theo morre seis meses depois. Sepultados lado a lado. Irmãos até no fim.

E se ele tivesse nascido hoje?

Essa pergunta me persegue.

Se Vincent tivesse acesso a um bom psiquiatra. Se tivesse remédios que equilibrassem seu humor sem apagar sua sensibilidade. Se tivesse um grupo de apoio, uma comunidade que entendesse sua dor sem julgá-lo. Se soubesse que doença mental não é fraqueza — é biologia, é química, é coisa de gente.

Será que ele teria se matado?

Duvido.

Ele poderia ter vivido até os 60, 70 anos. Pintado centenas de outras telas. Conhecido o sucesso. Abraçado sobrinhos. Rido mais. Sofrido menos.

Mas a história não permite “e se”. O que temos é o legado — e a responsabilidade de olhar para trás com compaixão, e para frente com esperança.

Conclusão: Ele era humano. E isso basta.

Vincent van Gogh não precisa ser romantizado como o “gênio torturado”. Não precisa ser reduzido ao cara que cortou a orelha. Ele foi muito mais.

Foi um irmão leal. Um observador sensível da natureza. Um lutador que, mesmo sem entender sua própria mente, nunca deixou de criar. De tentar. De existir.

Se você se vê nele — se conhece alguém que oscila entre o abismo e o furacão — lembre-se: isso não é defeito. É uma condição. E condições têm tratamento.

Não glorifique a dor como pré-requisito da arte. Honre a coragem de quem cria apesar da dor. E ofereça ajuda — mesmo que seja só um “como você está?” sincero.

Vincent não teve isso. Mas nós podemos dar isso uns aos outros.

Que sua arte continue nos comovendo. Que sua história nos ensine empatia. E que seu nome seja lembrado não pela tragédia — mas pela humanidade que ele, mesmo sofrendo, nunca deixou de ter.

Referências (fontes históricas confiáveis):

  • Cartas de Vincent van Gogh — Organizadas e traduzidas pela Van Gogh Museum.
  • Van Gogh: The Life — Steven Naifeh e Gregory White Smith (biografia premiada, baseada em mais de 1.000 cartas e documentos originais).
  • Van Gogh Museum (Amsterdã) — Acervo histórico com cronologia, cartas e análises médicas contemporâneas.
  • Theo van Gogh’s Letters — Correspondência entre os irmãos, arquivada no Instituto Real Neerlandês de História da Arte.
  • Dr. Jan Hulsker — “The Complete Van Gogh: Paintings, Drawings, Sketches — Estudo cronológico da obra e da saúde mental de Vincent. John Benjamins Publishing, 1980.
  • Relatório médico do Dr. Théophile Peyron — Diretor do Asilo de Saint-Rémy, que tratou Vincent em 1889-1890. Documentos originais digitalizados pela Biblioteca Nacional da França.

Escrito com carinho, pesquisa e muita, muita empatia. Para todos que carregam tormentas dentro de si — vocês não estão sozinhos. E merecem ser vistos. Inteiros.


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