TAB e Criatividade: Minha Inspiração nos Altos e Baixos e a Ligação Histórica com Gênios
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Criatividade bipolar |
Quando fui diagnosticado com Transtorno Bipolar há mais de 20 anos, depois de colocar minhas emoções um pouco mais controladas e sair do clima de desespero que fiquei ao ser diagnosticado, eu mergulhei fundo nas informações sobre o transtorno. A primeira coisa que percebi é que as informações sobre o tema são poucas, talvez porquê sejam de baixo valor de monetização e por ser um assunto muito específico.
Reparei também que o pouco que se tem de informação é em uma linguagem bastante técnica, voltada mais para estudantes da área de saúde ou profissionais. Não havia, e ainda quase não tem, sites ou blogs que tratam do assunto de maneira que pacientes ou seus familiares e amigos possam entender com clareza o que é o TAB, quais seus sintomas, gatilhos, onde buscar ajuda de maneira correta, etc.
O que encontrei de diferente de material técnico sobre o assunto, eram apenas sites e blogs explorando o assunto de maneira sensacionalista como curiosidade ou simplesmente usando opiniões e achismos do senso comum, o que acaba por estigmatizar ainda mais o Transtorno Bipolar.
Vasculhando a internet acabei encontrando materiais sobre o TAB em outras línguas e alguns falavam justamente sobre como podemos aproveitar e explorar nossos momentos hipomaníacos para canalizar essa “energia extra” e criatividade que temos e produzir algo que nos deixe felizes e de bem conosco, já que nossa jornada é complicada e com momentos de grande sofrimento.
Foi em um surto hipomaníaco que em 2007 criei meu primeiro blog falando sobre o Transtorno Bipolar. Sempre nesta linha de fornecer informação sobre o assunto “traduzindo” para uma linguagem mais acessível e humanizada o que os textos técnicos falam sobre o problema. Às vezes os profissionais de saúde esquecem que as enfermidades não ficam somente em seus consultórios, elas voltam com a gente pra nossa casa, relacionamentos e empregos.
Falar de maneira inteligível dentro do consultório é fácil, o problema é quando saem e se colocam na mídia, agindo como um especialista em uma palestra ou como um professor em uma sala de aula de uma universidade. Voltando ao assunto, aproveitei o momento em que estava hipomaníaco para canalizar toda a minha energia e criatividade para criar uma ferramenta que me fazia me sentir melhor, já que ser altruísta e ter empatia é um dos melhores medicamentos para quem tem problemas emocionais, pelo menos na minha opinião.
Me faz me sentir útil, ser mais do que apenas mais um no universo preconceituoso e estigmatizado da saúde mental. Melhora muito a minha autoestima, que é uma parte de nossa vida extremamente afetada pela doença. Nesse estado consigo trabalhar ininterruptamente em coisas que ao mesmo tempo me dão satisfação e não estão ligadas ao prazer imediato. Eu escrevo para meus Blogs, produzo algo que além de me dar satisfação emocional, ajuda outras pessoas.
Minha relação com o Transtorno Bipolar mudou depois que passei a usar a “ferramenta” da hipomania a meu favor. Ainda não consegui encontrar nada de útil em meus momentos de depressão, mas consigo às vezes fazer anotações sobre o que sinto e penso que me ajudam em novos textos para os Meus Blogs.
Encontrei algumas referências médicas que embasam este tipo de abordagem da doença e que gostaria de compartilhar com vocês.
Afinal, existe uma "Loucura Criativa"? Uma Conexão Antiga
Essa ideia de que a genialidade e a "loucura" andam de mãos dadas não é fofoca de internet. É um pensamento que existe há séculos. Lá na Grécia Antiga, o filósofo Platão já falava sobre a "mania divina", uma espécie de frenesi inspirado pelos deuses que tomava conta dos poetas e artistas, permitindo que eles criassem obras extraordinárias. Ele acreditava que a melhor arte não vinha da razão pura, mas de um estado alterado da mente. Aristóteles, outro gigante do pensamento, observou que os homens mais eminentes na filosofia, na política, na poesia e nas artes pareciam ter um temperamento "melancólico", o que hoje poderíamos associar aos estados depressivos.
Por muito tempo, essa conexão foi vista de forma poética ou filosófica. Foi só no século XX que a ciência, especialmente a psicologia e a psiquiatria, começou a investigar isso com mais método. E uma das figuras mais importantes nessa área é a psicóloga Kay Redfield Jamison. O trabalho dela é fascinante por um motivo especial: ela não é apenas uma pesquisadora que observa o fenômeno de fora. Ela mesma foi diagnosticada com transtorno bipolar e escreveu sobre sua experiência de forma corajosa e esclarecedora. Seu livro mais famoso, Touched with Fire (Tocado pelo Fogo), que infelizmente ainda não tem em português, é uma referência obrigatória e mostra como a história da arte ocidental está cheia de criadores que viveram com transtornos de humor.
Gênios Inquietos: Um Desfile de Nomes que Marcaram a História
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Van Gogh, Virginia Woolf e Beethoven |
Quando comecei a pesquisar a fundo, seguindo as pistas de Jamison e outros, a lista de nomes que encontrei foi de cair o queixo. Eram pessoas cujas obras eu admirava, que moldaram nossa cultura, e que, vistas sob a luz do conhecimento atual sobre o TAB, tiveram vidas que se encaixam perfeitamente nos ciclos de mania e depressão.
- Vincent van Gogh: Talvez o exemplo mais icônico. As mais de 800 cartas que ele escreveu, principalmente para seu irmão Theo, são um diário aberto de sua alma. Nelas, ele descreve períodos de energia febril, em que pintava um quadro atrás do outro, mal parando para comer ou dormir, seguidos por crises de desespero, angústia e paralisia. A intensidade de suas cores, as pinceladas grossas e cheias de movimento em obras como "A Noite Estrelada", parecem ser a tradução visual da tempestade que ele sentia por dentro.
- Virginia Woolf: Uma das vozes mais revolucionárias da literatura moderna. Em seus diários, ela detalha suas "ondas" de humor com uma precisão dolorosa. Havia momentos de euforia, em que as ideias para seus romances fluíam sem parar, e ela se sentia capaz de capturar a essência da vida em palavras. Depois, vinham os "abismos de melancolia", onde a simples tarefa de escrever uma frase parecia impossível. Essa dualidade não apenas marcou sua vida, mas se tornou o próprio tecido de seus livros, como Mrs. Dalloway e Ao Farol.
- Edvard Munch: O pintor norueguês, autor da famosa obra "O Grito", era explícito sobre a importância de sua dor para sua arte. Ele disse: "Meus sofrimentos são parte de mim e da minha arte. Eles são indistinguíveis de mim, e sua destruição destruiria minha arte". Ele via sua ansiedade e sua depressão não como obstáculos, mas como a própria fonte de sua visão artística única. "O Grito" não é apenas uma pintura de alguém gritando; é a representação visual de um ataque de pânico, uma sensação de desintegração que ele conhecia muito bem.
A lista continua e atravessa todas as áreas. Na música, temos Ludwig van Beethoven, cujas composições variavam de uma delicadeza sublime a uma fúria explosiva, refletindo seus próprios humores turbulentos. Na literatura, Edgar Allan Poe, mestre do macabro, cuja vida foi marcada pela instabilidade, pobreza e episódios que sugerem hipomania e depressão profunda. Mais recentemente, figuras públicas como a cantora Rita Lee, que em sua autobiografia fala com franqueza sobre seus "pratos" (manias) e "ratos" (depressões), e a atriz Carrie Fisher, nossa eterna Princesa Leia, que se tornou uma defensora incansável da saúde mental, usando seu humor ácido para quebrar o estigma em torno do transtorno bipolar.
Por que a Hipomania Parece um "Superpoder" Criativo?
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Explosão de Ideias |
Se você, como eu, já sentiu a energia da hipomania, sabe que a descrição não é um exagero. É como se alguém trocasse as pilhas do seu cérebro por uma bateria de alta voltagem. As ideias borbulham, as palavras fluem, as cores parecem mais vivas. A ciência tem algumas teorias interessantes para explicar por que isso acontece:
- Pensamento Divergente em Alta Velocidade: O pensamento divergente é a capacidade de gerar múltiplas ideias e soluções a partir de um único ponto. É o famoso "pensar fora da caixa". Estudos realizados com testes de criatividade mostram que pessoas com TAB, especialmente em estados de hipomania ou mesmo em períodos de normalidade (eutimia), tendem a ter um desempenho superior. Nossa mente começa a fazer conexões rápidas e inesperadas entre conceitos que, para outros, não teriam relação alguma. É como ter um Google interno superacelerado, que encontra links surpreendentes entre os arquivos da memória e da imaginação.
- A Coragem da Desinibição: Um dos efeitos mais notáveis da hipomania é a redução dos nossos freios internos. O medo do ridículo, a autocrítica paralisante, a preocupação com o que os outros vão pensar... tudo isso diminui. Essa desinibição nos dá uma liberdade imensa. Ela nos encoraja a experimentar, a arriscar, a seguir uma ideia maluca até o fim. A criatividade exige essa dose de ousadia, e a hipomania serve essa coragem em uma bandeja.
- Energia e Foco Incansáveis: O corpo e a mente entram em um estado de alta performance. A necessidade de sono diminui drasticamente, e podemos passar noites em claro trabalhando em um projeto que nos fascina, sem sentir cansaço. O foco se torna intenso, quase obsessivo. O mundo exterior desaparece, e só existe aquela tarefa, aquela música, aquele texto. É uma "zona de fluxo" turbinada, que permite uma produtividade que seria impensável em um estado de humor normal.
O Outro Lado da Moeda: A Dor que Também Ensina e Inspira
Seria uma mentira perigosa e irresponsável pintar a hipomania como um parque de diversões. A outra face do transtorno, a depressão, é um poço de sofrimento. É a ausência de cor, de som, de esperança. Parece o lugar onde a criatividade vai para morrer. E, no auge de uma crise depressiva, ela realmente morre. Não há energia para criar, nem mesmo para sentir.
Contudo, é na superação e na reflexão sobre esses períodos que muitos artistas encontram uma profundidade emocional única. A depressão nos força a uma introspecção brutal. Ela nos faz confrontar nossos maiores medos, nossa mortalidade, o sentimento de solidão. E essa experiência, por mais terrível que seja, pode se tornar matéria-prima para uma arte de imensa força e empatia. A poetisa Sylvia Plath conseguiu transformar sua angústia em poemas que são como um bisturi, cortando direto na alma do leitor. As anotações que às vezes consigo fazer nesses momentos, como mencionei, são sementes. Sementes que só vão germinar mais tarde, quando a luz voltar, mas que carregam a verdade crua da escuridão.
O Perigo de Romantizar a Doença: Um Alerta Necessário
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Transtorno Bipolar Romantizado |
Aqui, preciso fazer uma pausa e ser muito claro: o transtorno bipolar não é um presente, é uma condição médica séria e potencialmente fatal. A mesma energia que, na hipomania, pode criar um quadro ou um blog, na mania plena, pode destruir uma vida, levando a gastos impulsivos, comportamentos de risco e perda de contato com a realidade. E a depressão, em sua forma mais grave, pode levar ao suicídio.
Existe um mito perigoso de que o tratamento psiquiátrico "embota" a mente e "mata a criatividade". Esse medo impede muitas pessoas de buscar a ajuda de que precisam desesperadamente. A verdade é o exato oposto. O tratamento adequado, com estabilizadores de humor e terapia, não apaga quem somos. Ele nos dá o chão firme para que possamos ser quem somos de forma segura. Ele nos devolve o controle. A criatividade não vem do caos descontrolado; ela floresce quando temos estabilidade suficiente para manejar nossas ferramentas internas. O tratamento nos dá os freios e a direção para pilotar o carro potente que é a nossa mente, em vez de sermos atropelados por ele.
Encontrando o Equilíbrio e um Propósito na Jornada
Compreender essa complexa relação entre o TAB e a criatividade foi um ponto de virada para mim. Parou de ser apenas uma luta contra um diagnóstico e passou a ser uma jornada de autoconhecimento. Aprendi a reconhecer os sinais da hipomania e, em vez de me deixar levar pela sua correnteza, tento usar um pouco dessa energia para construir algo positivo, como este espaço.
A jornada não é fácil. Exige vigilância constante, disciplina com o tratamento e muita autocompaixão. Mas saber que não estamos sozinhos, que nossa sensibilidade aguçada e nossa forma intensa de sentir o mundo podem ser uma fonte de força e conexão, é um alento poderoso. Transformar a dor e a euforia em algo que pode, talvez, iluminar o caminho de outra pessoa, é a melhor forma que encontrei de dar um propósito a essa montanha-russa. E isso, por si só, já é um ato de criação.
Referências Externas:
Estudos e Artigos Acadêmicos:
- Faculdade de Medicina da UFMG: A relação entre transtorno bipolar e criatividade
- Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva: Qual é a Relação entre Criatividade e Transtorno Mental?
- Revistas USP: Transtorno bipolar: uma revisão dos aspectos conceituais e clínicos
- Repositório da Universidade de Lisboa: Criatividade e doença bipolar
- Karolinska Institutet (via Superinteressante): Doenças mentais são mais comuns em pessoas com trabalhos ligados à arte e criatividade
Livros de Referência:
- Touched with Fire: Manic-Depressive Illness and the Artistic Temperament por Kay Redfield Jamison (informações disponíveis na Amazon).
- Uma Mente Inquieta por Kay Redfield Jamison (informações disponíveis na Amazon